sábado, 9 de março de 2024

Meu primo Célio


E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da década de noventa ele já usava o cabelo enroladinho, com as molinhas para cima e a lateral aparada na régua. Hoje em dia não tem um neguinho que jogue bola na Europa e não use este corte, vide o Vini Jr.

Metade das coisas úteis que aprendi entre a infância e a adolescência, e que continuam úteis até hoje, eu aprendi com o Celinho. Foi com ele que eu aprendi a andar de bicicleta (já poderia parar por aqui né). Mas com ele eu também aprendi a fazer minha própria pipa reciclando os cadáveres das pipas mortas. Aprendi a gostar do meu cabelo crespo. Aprendi a subir montanha e a mergulhar na cachoeira.

Ele era uma espécie de guru da minha infância, era o menino mais velho que eu queria ser. Quando o meu avô morreu, não o avô que também era avô dele, mas o outro avô, quando ele morreu o Celinho foi passar uma semana dormindo lá em casa para me tirar a tristeza. Dessa vez ele me ensinou a fazer uma asa delta com a carcaça da pipa reciclada. A asa delta era tão boa que até voava, desde que o vento estivesse bem forte, dava até para desbicar.

A coisa mais importante que eu aprendi com o Celinho foi: gostar de Hip Hop. Isso moldou a minha personalidade de hoje. Sabe como é, lá em casa só rolava música religiosa. Então eu fugia para a casa do Celinho para ouvir as músicas do mundo. Ele colocava os vinis para tocar na pick-up que ele comprou da sucata e reformou sozinho. O som saia cristalino e bem equalizado da caixa que ele mesmo montou. Um luxo! Se vocês conhecessem o Celinho não dariam a mínima para esse Rodrigo Hilbert.

Com ele aprendi a diferença entre o Charme e o Funk. E entre o Funk e o Miami Bass (essa eu aposto que você, caro leitor, nunca ouviu falar). Ele me apresentou o estilo mais importante da música (depois do blues e do samba): o RAP.

- RAP significa “ritmo e poesia”. É só isso. Mas é tudo. – Celinho me explicava.

Na casa dele eu ouvi pela primeira vez o Cidinho e Doca. E todas as outras duplas de Mcs que vieram a reboque. Mas a coisa ficou séria mesmo quando ele me apresentou o Notorius B I G. Ficou séria porque na sequência veio 2Pac e Public Enemy. Eu devorava as músicas enquanto ele me explicava as histórias por traz de cada letra. E dizia de onde o DJ tinha tirado cada sample . Até hoje eu não sei de onde ele tirava aquelas informações, era uma época que a gente nem concebia a ideia do que seria o Google.

Eu já era homem feito quando no verão, num dia cinzento, abafado e sem graça até então, adentrei a casa do Celinho e me deparei com aquele álbum duplo:

- Os Racionais lançaram um CD novo Celinho?

- Já tinha passado da hora né?

- Quem é esse negão na capa?

- É o Blue.

- E esse carro?

- É um Impala.

Ele botou o som pra tocar. Áudio impecável como sempre. Eu fiquei ali esparramado na varanda, olhando para o teto, prestando atenção na letra. Quando chegou na quinta faixa meu mundo desabou: Negro Drama.

- Tá chorando mané?

- Porram Célinho, você me conhece... Tem que me avisar antes de colocar essas coisas pra gente ouvir.

Na semana passada eu estava num engarrafamento na Linha Amarela, altura de Bonsucesso. Ali sempre está engarrafado, pode ser sexta a tarde, domingo pela manhã ou terça de madrugada. Eu não consigo entender. Pois lá estava eu ouvindo RAP do modo randômico do aplicativo. E o danado do algoritmo me põe para tocar Negro Drama. Antes que eu pudesse me defender ouvi uma voz vinda do banco de traz do carro:

- Papai... Você tá chorando de novo...

Até o meu filho já sabe. Nas duas últimas décadas eu ouvi essa mesma música uma infinidade de vezes. Chorei em todas elas. No mesmo trecho. É um carma que eu tenho. Um dia hei de encontrar com o Brown para cobrar esta fatura.


 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0

Imagem: Racionais MC's, Nada Como Um Dia Após O Outro, Capa do Álbum, 2002

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Montanha russa




As amizades me levam por caminhos definitivamente inglórios. Outro dia desses eu fui parar num parque de diversões junto com o Celsinho, o Alemão e o Encantado. A gente chama o Encantado de Encantado porque ele se parece com o Príncipe Encantado daquele filme do Shireck. Figuraça. 

Agora vejam vocês,  eu e três outros marmanjos de meia idade concordamos que seria uma ótima ideia andar de montanha russa num calor de quarenta graus. Sabe aquele dia em que até o vento é quente? Aquele vento escaldante que perde a sua função apaziguadora e passa a atuar como aliado da quentura a nos cozinhar lentamente. Pois então estava assim o clima.

A primeira volta de montanha russa foi divertidíssima, tão divertida quanto a sensação de tontura ao término da brincadeira. Se o amigo leitor é da minha estirpe sabe bem como é legal essa sensação de tontura. Eu mesmo quando era menino brincava de rodar até cair no chão. Dizem que isso é porta de entrada para outras drogas no futuro. Deve ser. Cá estou eu a andar de montanha russa no verão.

O problema é que a tontura não passou dentro do tempo regulamentar de uma pessoa normal que anda numa montanha russa normal. O amigo Celsinho foi o primeiro a notar.

- Tá tudo bem aí Lapa?

- Rapaz... Bateu aqui uma onda... O mundo meio que tá girando mais rápido que o de costume.

Celsinho deu uma gargalhada. Acontece que o Alemão estava empenhado em ir na montanha russa o máximo de vezes possível e, pouco tempo depois, arrastou a gente para a segunda andada de montanha russa. Eu deveria ter negado. Mas sabe como é. Preciso manter minha fama de mau. Lá fui novamente, claramente sem ter condições para tal.

Aí bateu uma bad trip sinistra. Perdi totalmente o sinal do GPS. Parecia que o mundo estava descendo uma corredeira de rafting. E se passou dez minutos, quinze, meia hora, metade da tarde. Nada da tontura passar. Os amigos andaram de montanha russa o restante do passeio e eu fiquei bebendo água gelada sentadinho na sarjeta. Foi humilhante? Nem tanto, eu já cometi vexames muito menos publicáveis que este. Muitíssimo.

Justiça seja feita o único amigo que se se solidarizou comigo foi o Encantado. Mesmo porque, em se tratando de experiência em cometer vexame, ele está na mesma categoria que eu. Nesse mesmo dia ele aprontou uma. O nome disso é empatia:

- Lapinha será que você não tem labirintite?

Pois bem senhores, lá fui eu na semana seguinte faze exame de labirintite. Vocês já fizeram exame de labirintite? É o único da medicina com cem por cento de eficácia. Porque se você não tem labirintite acaba contraindo no momento do exame. Uma maravilha.  O procedimento consiste em enfiar uma mangueira no seu ouvido e soprar um ar quente até te provocar uma labirintite. Daí eles te perguntam: – É isso que o senhor sente quando fica tonto? –  Você responde que sim e ganha um certificado de labirintite. Sucesso total.

O inferno é que, terminado o exame, o mundo não para de rodar por um longo tempo. Olha que eu tenho experiência nisso de mundo girando. Mas é num rpm que não tem porre que alcance. Vai por mim.

No dia seguinte levei o exame para a doutora que o havia me prescrito. Ela receitou um remedinho, limitou meu café a três míseras doses diárias – não antes de me ensinar que uma dose de café são, pasmem, 60 ml – pediu para cortar tudo que tem açúcar em excesso e toda sorte de coisa que pode acelerar o sujeito. Tá ficando difícil ser eu. 

- Doutora e o álcool.

- Como assim?

Me arrepiei de medo

- A cervejinha doutora?

- Ah... Sem restrições adicionais por conta disto. Bebida alcoólica você pode continuar tomando, mas com a moderação de sempre.

Ainda bem que ela não me conhece.


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segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Ano novo


Eu aprendi muito com um antigo compositor baiano, mas essa foi um cearense que me ensinou: o novo sempre vem.

Pois o ano novo está aí,  nas últimas semanas de gestação, a previsão é que nasça algum dia depois do carnaval. Cuidar de menino não é fácil. Então eis aqui algumas dicas que cataloguei entre os amigos que fiz nas cercanias na Estrada Real e pelos muitos sertões por onde tenho andado. 

Como todos os pais vocês vão achar que ele é muito diferente dos demais. Não é. 2024 vai ser muito parecido com 2023 que foi parecido com 22. Um pé de limão cravo, vai sempre dar limão cravo, todos eles igualmente limões e igualmente cravos. Seu filho vai ser uma criança como todas as outras crianças.

Mas, aqui vai um conselho de quem já partiu e espremeu muito limão cravo: nem um limão cravo é igual ao outro. Cada limão é único desde a flor até a semente. E sendo semente vai gerar um broto único. E do broto vai crescer um limoeiro absolutamente singular em todo o universo. No dia que meu filho nasceu, poderiam escondê-lo entre vinte mil outros recém nascidos, eu o acharia fácil. Nesse sentido, 2024 vai ser incrivelmente imprevisível. E é isso que faz a vida ser o que é. 

Você não controla nem o seu intestino, então não tente controlar o novo. Com o tempo você descobre que a paternidade é sobre não atrapalhar. E muito ajuda quem não atrapalha. A despeito disso, é preciso agir. É preciso decidir. E fiquem tranquilos. Vocês vão errar. Mas nossos pais também erraram. Nossos avós também erraram. Assim como todos os nossos ancestrais. E cá estamos nós.As crianças são muito mais resistentes do que parecem.

Não temam o ano novo. Façam o que tem que ser feito, da melhor maneira que puderem. Isso basta. E se não bastar, peça ajuda. De preferência aos mais velhos.

Os conselhos dos mais velhos vão lhe parecer obsoletos. Ou anacrônicos. Ou sem sentido. Ou  simplórios de mais. Assim parecem porque de fato o são. Então caberá a você segui-los. Eu, por exemplo, nunca os sigo, e quando sigo, o faço  com adaptações. E quase sempre descubro que de fato os velhos estavam certos. E isso torna minha vida terrivelmente mais difícil do que deveria. Não sejam teimosos feito eu.

Haverá adversidades, algumas fáceis, outras difíceis e também as impossíveis. As impossíveis não tem solução, então saibam identificá-las e as aceitem rápido. Quanto mais demorar, mais vai doer. Agora para os demais problemas existem dois tipos de solução, as simples e as complexas. Para os problemas fáceis use a solução mais simples. E para os problemas difíceis use a solução mais simples também.  Não complique.

O novo sempre vem e vocês serão incríveis. Como eu posso saber disso? Bem, na verdade eu não sei. Mas eu gosto tanto de vocês que eu não consigo imaginar de outro jeito. E quando eu escrevo bêbado o texto sempre sai assim, emotivo.

O ano novo é um recém nascido. Esse texto poderia ter um título mais poeticamente comum, como Joaquim , por exemplo. 2024 tem muita sorte de ter vocês como pais.  Então, feliz ano novo!


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domingo, 29 de outubro de 2023

Toti


Armando Antunes de Oliveira Toti, ou, para os íntimos, simplesmente Toti. Foi o paulistano mais carioca que já viveu por essas bandas. Eu tenho inúmeras razões para justificar esta afirmação. A principal é o fato de o Toti ser profundo conhecedor de cada caminho do Rio de Janeiro.

Eu não estou de brincadeira, ele conhece a cidade maravilhosa melhor que muito carioca por aí. Principalmente aqueles que habitam o Além Túnel.

Conheci o Toti na época que eu era office boy e toda manhã tomava uma média com pão na chapa em uma padaria que tinha ali nas cercanias da Dias da Cruz, quase chegando no Leão do Méier. Essa padaria já fechou, no local hoje acho que funciona uma Drogaria Venâncio.

Um dia eu estava pegando uma dica de como chegar numa daquelas vielas escondidas de Copacabana quando a Dona Neusa, que no caso era tia da padaria que fazia no nosso café, apontou para ele e disse:

- Pergunta pro Toti.

Pronto o Toti virou uma espécie de oráculo para mim.

Dois meus oito leitores frequentes, metade são jovens mancebos. E é a estes que eu me dirijo nos dois parágrafos abaixo:

Houve um tempo que não existia Waze, tampouco Google Maps. Daí a gente tinha que recorrer ao Guia REX para poder se deslocar por aí.

O Guia Rex era um calhamaço que ficava disponível gratuitamente em toda a agência dos correios, era atualizado anualmente e trazia todas as ruas da cidade. Indicando as linhas de ônibus que passavam por elas, as que passavam perto, se dava para ir de metrô, trem, barca, o escambau. Contudo o uso do Guia Rex exigia letramento avançado em cartografia, biblioteconomia e hermenêutica. O que fazia do Toti a opção mais acessível.

- Toti, sabe qual é essa Rua... “Marcílio Dias”?

- Isso é uma ruazinha de uma única quadra perto da Central do Brasil, ali atrás do quartel.

- O dois quatro Méiar passa lá?

- Vai de trem meu camarada! Essa hora tá tudo engarrafado.

Há alguns anos o Toti voltou para São Paulo e o Rio sem ele perdeu uma fração importante de sua poesia. O cara faz tanta falta que até virou verbo: totiar. 

Expressão que é utilizada de forma costumaz no idioma dos botecos do grande Méier e região da Leopoldina quando alguém precisa de uma informação com riqueza de detalhes:

- Meu camarada, você poderia totiar pra mim como se faz isso?

Ou ainda, quando uma pessoa está te contatando um caso com excesso de explicação você pode interpelar:

- Já entendi, não precisa ficar totiando tanto...

Recentemente um amigo foi a São Paulo da garoa e encontrou o Toti. Quando ele retornou me contou tristonho que por lá já não se vê garoa, então São Paulo é São Paulo só, sem garoa.

Mas a boa notícia é que o Toti, apesar de ter voltado para sua terra natal há muito tempo, continua chamando isquina de isquina e thiatro de thiatro. Ou seja, àquela fração de poesia carioca que eu achava que havia se perdido, na realidade está muito bem guardada na casa do Toti.


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Foto: https://www.tupi.fm

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Dinastia

Eu entro em cada cilada que só vendo. Outro dia um amigo me pediu pra tomar conta de um peixe. Você leu certo. Um peixe! 

Te explico.

Esse meu camarada, o nome dele é Marcos, tem uma filhinha de 4 anos que ganhou um aquário com um peixinho vermelho de cauda azul chamado Charles. Como era de se esperar, a pequena se afeiçoou muito pelo bichinho.

Daí veio um feriadão e eles decidiram viajar para Madalena, cidadezinha do interior do Rio onde o pessoal gosta de ir para ficar olhando estrela à noite. O meu amigo Marcos achou então que seria mais seguro deixar um tutor responsável pelo peixinho Charles. Uma vez que se ele viesse a falecer, por fome ou excesso de temperatura no aquário, seria um desastre para a pobre criança.

Eu achei a história bonitinha e não me opus a ficar cuidando do peixe, afinal, que trabalho isso poderia me dar? 

Combinei tudo direitinho e eles deixaram o aquário lá em casa com duas instruções: manter a tampa fechada e alimentar com três bolinhas diárias – eles me deram também um pote com as tais bolinhas.

No primeiro dia que eu fui alimentar o Charles, me dei conta que as tais bolinhas eram minúsculas! Menores que um grão de mostarda. Achei uma muquiranagem dar só três míseras bolinhas para o peixe. Além do mais o Charles estava me olhando com uma carinha de fome.... dei logo umas trinta e oito bolinhas e fui à padaria comprar pão.

Quando eu voltei da padaria estava lá o Charles nadando de barriga para cima:

- Ei Charles véio de guerra! Tá com o buchinho, cheio mô fio!

Algumas horas depois eu olhei para o aquário novamente e estava lá o Charles na mesma posição. Só que dessa vez com uma expressão meio abobalhada e um olhar um tanto sem brilho.  Chamei a Maria:

-  Amor... vem aqui ver uma coisa...

Ela olhou e foi logo decretando:

- Morreu.

Esse tipo de notícia não se dá assim. Mas quem conhece a Maria sabe: ela é papo reto o tempo todo.

- Ao que parece morreu feliz. 

Fiquei ali imaginando como ia contar o caso para Marcos, e a menina tadinha... Depois de muito matutar eu tive uma brilhante ideia. Peguei o corpo do Charles, levei na loja de animais e perguntei para o atendente:

- Tem um igual?

- Morreu?

- Não... ele é atleta de apneia.

- Como?

- Morreu sim meu camarada, tem igual?

- Igual... igual não tem, mas tem parecido.

- Serve.

Peguei o peixinho novo, levei para casa e coloquei no mesmo aquário. A Maria quando viu olhou pra mim e disse:

- Esse é o Charles Segundo?

- É. Será que vão notar?

Ela ficou em silêncio. 

Dois dias depois achei que a casa de Charles Segundo estava um tanto suja.  Transferi o peixe para um balde e dei uma faxina caprichada no aquário – pelo menos do hardware eu ia cuidar bem. Arrumei a decoração e tudo mais. Ficou uma beleza.

Ao terminar eu olho para o balde... Cadê Charles Segundo?

Tava lá durinho no chão. O miserávi pulou do baldeeeee! Meu deus do céu me venderam um peixe suicida.

Voltei na loja de animais levando o cadáver de Charles Segundo:

- Então... o peixe que vocês me venderam morreu, vou querer outro.

- Vai comprar mais um?

- Nada disso, tem só dois dias que comprei, ainda tá na garantia...

Olha foi uma resenha. Essa parte não vou contar aqui porque envolve o uso de intimidação e palavras de baixo calão. Mas eu fiz valer meu direito de consumidor e peguei mais um peixinho.

Terminado o feriadão meus amigos foram lá em casa para pegar o aquário. A menina ficou toda feliz, mas o danado do Marcos olhou estranho para mim e disse:

- Tá crescidinho o Charles né Lapinha?

Ao que a minha patroa respondeu:

- Charles Terceiro.


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quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Temos um culpado


Pela primeira vez neste século o Botafogo vive um momento de fato glorioso. Lidera o campeonato brasileiro desde as primeiras rodadas e soma uma vantagem avassaladora na tabela de pontuação.

Juan e seus dois filhos não perdem uma única partida no Engenhão. Sempre no setor leste inferior, na vigésima fileira. Os três acomodam-se religiosamente da mesma forma. A caçula senta-se no meio, com a camisa oficial, número sete nas costas. O mais velho a esquerda da irmã, trajando a camisa preta de treino, toma o seu lugar ao lado de um jovem casal tijucano.  Sim eles sempre estão lá na mesma posição. O tijucano é um cara bonachão, com dread bem trançado e uma tatuagem de Jesus Cristo negro cobrindo todo o braço esquerdo. Sua esposa, branquinha e de cabelos encaracolados, parece uma professora da educação infantil. 

O lugar do Juan é a direita da filha. Ele sempre veste sua camisa retrô do Nilton Santos. Já ficou amigo do mageense que se senta ao seu lado. Um senhor idoso, preto e magrinho que usa a camisa do Tulio, àquela do seven-up. Toda partida  o velho torcedor mageense leva um cavaquinho sob o suvaco. Ambos, o homem e o instrumento, aparentam a mesma idade. 

A fileira de baixo invariavelmente é  ocupada por  grupo que freta uma van para vir de Volta Redonda ao Rio. E a de cima por uma turma de ex-alunos da escola técnica federal de química. E assim vai se formando a torcida do Botafogo.  

Porém, na última semana, por causa de um problema na conexão com a internet, o Juan não conseguiu comprar os ingressos para o clássico com o Flamengo. Logo contra o arquirrival. Os meninos ficaram furiosos, o mais velho então, estava à beira de um colapso.

-  Calma – tranquilizou o Juan – a gente vai proceder conforme vem dando certo nos jogos que a gente joga fora do Rio. Vamos ficar aqui neste sofá, sua irmã no meio, você de um lado, eu do outro.

- A mamãe não pode estar em casa.

- Eu sei, eu aviso pra ela, vai dar tudo certo.

A partida é na noite de sábado. O jogo se inicia com clima tenso e após dois, apenas DOIS minutos, Wesley, lateral do Flamengo, cruza uma bola na área e a defesa do Botafogo, num erro tosco, chuta contra o próprio patrimônio. Gol do Fla. Os meninos olham para o Juan, abobalhado com a garrafa verdinha da longnek paralisada no meio do caminho entre o braço do sofá e a sua boca.

- Pai!

- Quê.

- PAI!

- Que foi?

- Tá sem camisa pai... falou a menina choramingando

Juan notou o erro e saiu correndo para o guarda-roupas, revirou de um lado para o outro e nada de achar a camisa retrô do Nilton Santos. Ligou para a mulher. Ela, que estava num barzinho com as amigas da pós-graduação, deu uma enquadrada no malandro e disse que ele se virasse e não voltasse a ligar por um motivo desses.

Juan procurou mais uma vez no armário. Nada de encontrar.  Lembrou-se da pilha de roupas que aguardavam para serem passadas no cantinho da área de serviço. Correu até lá. Derrubou a pilha de roupas no chão e enfim, achou a camisa retrô do Nilton Santos.

Foi o tempo do Juan sentar-se no sofá, terminar o gole na cerveja que havia sido suspenso no início do jogo. Bola no ataque do Fogão, a zaga do Flamengo desarma o Tiquinho Soares, mas a redonda sobra aos pés de Vitor Sá, que chuta sem chances de defesa para o goleiro adversário. Botafogo um, Flamengo também um. Os três comemoraram em êxtase.

A partida segue tensa. Agora estamos no segundo tempo, jogo pegado, porém morno, sem chances claras para ambos os lados. Uma barata entra voando na sala do Juan, as crianças começam uma gritaria.

- Pega! Pega! Mata! Mata!

Poucas coisas nesse mundo são mais apavorantes que uma imensa barata voadora. Num reflexo impensado, Juan tira a camisa retrô do Nilton Santos e num rodopio acerta o inseto que cai ao chão desnorteado. Uma pisada firme, um estalo nojento, está completo o serviço.

Enquanto, ainda sem camisa, o Juan com uma pá e uma vassoura recolhia o cadáver da barata, uma bola era lançada para o Bruno Henrique, o mais talentoso atacante do Flamengo. Veloz como uma flecha Bruno Henrique passa pelos defensores do Botafogo, e num lindo chute acerta o ângulo da meta alvinegra. Golaço do Fla. Daqueles que, de tão bonitos, merecem uma placa.

Botafogo 1, Flamengo 2.

As crianças se negam a olhar para o pai. Nada se ouvia, um silêncio sepulcral se instala na sala. Silêncio que só seria quebrado ao término da partida. Decretada a derrota do Botafogo o filho mais velho do Juan respira fundo e setencia:

- Barata filha da puta.


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domingo, 27 de agosto de 2023

Solomons


Marina retornava para casa após um dia intenso de trabalho e estudo na pós-graduação do Instituto de química da UFRJ. Pegou o ônibus da linha nove três meia no fim da tarde, quando a Ilha do Fundão estava coberta por uma luz  cambaleante. As folhas dos oitis sibilavam ao sabor de um vento morno. Era o anúncio de uma frente fria, a segunda daquele ano. Sentiu um alívio danado quando tomou o assento e pousou sobre o colo a pesada mochila contendo os dois volumes do Solomons, era o trabalho do fim de semana.

Para você que, assim como eu, não sabe fazer um “ó” com um copo na areia, explico que “Solomos” é como os cientistas chamam na intimidade o livro escrito pelos americanos T.W. Graham Solomons, Craig B. Fryhle e Scott A. Snyder, intitulado: Química Orgânica. São dois volumes que somam mil duzentas e cinquenta e seis páginas em mais de três quilos de capa dura e conhecimento que eu e você jamais teremos. Nesta e na próxima vida.

Dezoito minutos depois de conseguir o assento no ônibus Marina quis pegar no sono, mas foi acordada por uma perna insistente roçando na sua. Olhou para o lado e notou um senhor de meia idade vestindo uma camisa polo listrada. A gola mal passada estava muito amarelada bem no contorno do pescoço, empapado de suor. Marina se espremeu no canto do banco, como se quisesse fundir-se à parede do coletivo. Ainda assim, a perna folgada do sujeito alcançou a sua.

 – Este ônibus não está cheio, nem esse cara é assim tão grande, eu não acredito que está acontecendo comigo de novo. – Pensou.

Aos quinze anos, quando ainda era uma estudante do ensino médio, Marina foi abusada quando passava por uma feira livre com as amigas. Um sujeito jovem, que não aparentava mais que vinte e cinco anos, se achou no direito de colocar a mão entre as pernas da moça e subir até o limite da coxa levantando a saia e expondo a menina. Marina agarrou nos braços de uma amiga e correu arrastando a colega. Chegou em casa chorando e foi incapaz de explicar o ocorrido aos pais. Inventou uma desculpa enjambrada e pôs uma pedra sobre o assunto.

A memória daquele dia voltou de forma avassaladora, ela olhou bem na cara do sujeito que se esparramava no ônibus. O canalha não desviou o olhar. Ele tinha uma expressão de lascívia e deboche, como de quem quer intimidar. Marina encolheu-se ainda mais e tentou olhar ao seu redor pelo reflexo do vidro da janela.

Lembrou que só voltara a usar saia muitos anos após aquele ocorrido na feira, bem na época que a saia evasê voltou à moda. Na ocasião, sentiu-se tão linda que dispendeu vários minutos a se medir do espelho. Naquele dia jurou para si mesma que jamais votaria a se privar de uma coisa de gostava por conta de macho babaca. Seja uma peça de vestuário, seja andar de ônibus, seja lá o que fosse.

Enquanto espremia a mochila contra o corpo sentiu uma das mãos do sujeito a lhe tocar o ombro e observou que a outra mão ele pousava sobre a própria genitália. Um arrepio percorreu toda sua coluna vertebral. A garganta secou, deu um nó.

Lembrou novamente da menina na feira, assustada. Lembrou da mulher deslumbrante de saia evasê, plena após recuperar um direito que lhe fora furtado por anos. Um direito tão elementar, não de vestir uma saia, mas de poder andar sem medo.  Ambas, duas versões de si. Nenhuma era ela naquele instante.

Olhou mais uma vez para o sujeito, ele sorriu. – ele tá rindo? – cada músculo do corpo de Marina se contorceu, de nojo e revolta. Segurou firme a mochila e num movimento furtivo descarregou com ira todas as mil duzentas e cinquenta e seis páginas do Solomons no meio da cara do sujeito. Fez um barulho opaco – toc! – e um filete melado de sangue desceu contornando a boca aberta do tarado. A motorista do ônibus freou bruscamente, olhou para trás:

- Tá tudo bem aí colega?

- Ela quebrou meu nariz!

- Eu não tô falando contigo não vacilão. Vaza daqui... Tá tudo bem contigo colega?

- Tá sim, já resolvi. – Respondeu Marina, enquanto observava o cretino descendo do ônibus.

 

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Meu primo Célio

E tem esse meu primo Célio, que na intimidade a gente chama de Celinho, de alguma forma ele sempre foi vanguarda. No início da d...